O futebol perdeu a graça

Desde criança sou fanático por futebol. Daqueles que não perdem um jogo sequer, que torce, que vibra, que chora, que sorri, que grita, que pula, que xinga e que fica em silêncio. Seja em vitórias, empates ou derrotas, eu sempre estive ali. De corpo e alma. Carrego comigo essa paixão no braço esquerdo, eternizada em uma tatuagem com letras grandes que dizem o nome do meu amor: Vasco.

Minha história com o Vasco começou nos anos 80, dentro do Maracanã. Meu falecido pai, flamenguista roxo, me levou despretensiosamente para assistir a final do Campeonato Carioca entre Vasco e Flamengo. Um gesto simples de um pai apaixonado por futebol, talvez imaginando que o filho seguiria seus passos. Minha saudosa mãe também era apaixonada pelo Flamengo. Mas naquele dia, aconteceu o contrário.

Lembro com perfeição, como se as cenas estivessem passando agora diante dos meus olhos. Estávamos no estádio, mas meu pai tinha o hábito de ouvir o jogo pelo rádio. Naquele dia, ele sintonizou na Rádio Globo, onde Waldir Amaral narrava com a emoção de sempre. Em um determinado momento, ele disse: “Será impossível para o Roberto Dinamite fazer esse gol de falta. Está longe da área e a barreira tem cinco jogadores do Flamengo. Um paredão.” Foram exatamente essas palavras. Logo em seguida, o impossível aconteceu. O estádio explodiu em êxtase. Gol do Bob. Vasco campeão.



Foi naquele instante que me tornei vascaíno. Não houve escolha. Foi emoção pura. Meu pai ficou contrariado, mas respeitou. O futebol sempre foi maior que a rivalidade. Era o elo entre gerações, entre pais e filhos, entre amigos e desconhecidos. E assim continuei. Levei adiante esse amor e o transmiti aos meus filhos. Eles também são vascaínos.

Mas algo mudou. E não foi com o tempo. Foi com o futebol.

Com a idade, percebi que o sentimento foi enfraquecendo. A paixão perdeu força. O ímpeto e a alegria que sempre me impulsionaram já não brilham com a mesma intensidade. E não se trata das derrotas, dos rebaixamentos ou das más fases. Essas coisas sempre fizeram parte da trajetória de qualquer torcedor. Nós aprendemos a cair e a levantar. A tristeza da bola na trave é o que torna o gol ainda mais emocionante. Faz parte do jogo.

O que não faz parte é essa sombra que paira sobre o futebol atual. Um nevoeiro que esconde a beleza e a espontaneidade do jogo. O futebol virou loteria. Tornou-se alvo de apostas, de interesses obscuros, de resultados suspeitos. As partidas já não parecem limpas. A dúvida passou a ser constante. A cada pênalti, a cada expulsão, a cada gol estranho, surge a pergunta: foi erro humano ou algo mais?

As apostas tomaram conta. Hoje é impossível ver uma transmissão esportiva sem que um apresentador ou comentarista mencione uma casa ou site de aposta. Elas estão nos uniformes, nas placas de publicidade, nas entrevistas. São onipresentes. E não estou falando aqui de quem aposta por diversão ou por adrenalina. Estou falando da estrutura por trás disso. Da engrenagem que movimenta bilhões e, infelizmente, parece influenciar até o que acontece dentro de campo. O caso do Bruno Henrique do Flamengo, é apenas um dos muitos exemplos.

Mas a notícia de ontem foi um soco no estômago. A polícia do Rio de Janeiro revelou que havia um plano de milicianos para sequestrar o presidente do Vasco, Pedrinho, por causa da má fase do time. Não estamos falando de uma fake news, de um boato de arquibancada, mas de uma investigação séria. A que ponto chegamos?



Pedrinho foi um ídolo da minha geração. Um meia talentoso, inteligente, que representou com dignidade o Vasco e o futebol brasileiro. Hoje é presidente do clube que aprendi a amar, que ensinei meus filhos a amar. E agora está sob ameaça. Isso não é futebol. Isso é barbárie.

O futebol perdeu a graça. E essa frase me dói profundamente. Porque fui criado pelo futebol. Vi meu pai vibrar com o Flamengo. Vi meu avô gritar pelo seu Botafogo. Vi meus filhos gritarem gol do Vasco. Vi estranhos se abraçarem em bares e estádios como se fossem velhos amigos. Vi gente simples esquecer por noventa minutos dos problemas da vida. Vi paz em um país marcado por tantas dores.

E agora vejo medo.

A culpa não é do Vasco, nem de Pedrinho, nem dos jogadores. É de um sistema corrompido. De uma sociedade doente. De uma cultura que misturou crime com esporte. De uma política que lavou as mãos e deixou o futebol se transformar em um campo fértil para criminosos. Enquanto o dinheiro falou mais alto, os valores foram sendo esmagados.

Mas ainda há tempo. Ainda é possível salvar o futebol. Ainda podemos resgatar o que ele tem de melhor. A infância que ele desperta. A comunhão que ele promove. A identidade que ele carrega. Mas será preciso coragem. Coragem para investigar, para punir, para regulamentar. Coragem para limpar, para resistir, para recomeçar.

E será preciso amor. O mesmo amor que me fez torcer, vibrar, chorar e sorrir por esse clube. O mesmo amor que transforma um chute em poesia, uma defesa em milagre, um gol em redenção.

Hoje, mais do que nunca, o futebol precisa ser devolvido ao povo. Sem medo. Sem fantasmas. Sem ameaças.

Porque se o futebol continuar perdendo sua graça, perderemos também uma parte essencial de nós mesmos.

E eu me recuso a aceitar isso.


Autor

  • Sobre o autor

    Léo Vilhena é fundador da Rede GNI e atua há mais de 25 anos como jornalista e repórter, com passagens por veículos como Jornal Unidade Cristã, Revista Magazine, Rede CBC, Rede Brasil e Rede CBN/MS. Recebeu o Prêmio de Jornalista Independente, em 2017, pela reportagem “Samu – Uma Família de Socorristas”, concedido pela União Brasileira de Profissionais de Imprensa. Também foi homenageado com Moções de Aplausos pelas Câmaras Municipais de Porto Murtinho, Curitiba e Campo Grande.

    Foi o primeiro fotojornalista a registrar, na madrugada de 5 de novembro de 2008, a descoberta do corpo da menina Raquel Genofre, encontrado na Rodoferroviária de Curitiba — um caso que marcou a crônica policial brasileira.

    Em 2018, cobriu o Congresso Nacional.

    Pai de sete filhos e avô de três netas, aos 54 anos continua atuando como Editor-Chefe da Rede GNI e colunista do Direto ao Ponto, onde assina artigos de opinião com olhar crítico, humano e comprometido com a verdade.


    "Os comentários constituem reflexões analíticas, sem objetivo de questionar as instituições democráticas. Fundamentam-se no direito à liberdade de expressão, assegurado pela Constituição Federal. A liberdade de expressão é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal brasileira, em seu artigo 5º, inciso IV, que afirma que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato"


    NOTA | Para ficar bem claro: utilizo a Inteligência Artificial em todos os meus textos apenas para corrigir eventuais erros de gramática, ortografia e pontuação.

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