Este texto talvez incomode alguns poucos, mas certamente vai tocar o coração de muitos, principalmente daqueles que nasceram entre os anos de 1970 e 1999. Somos as gerações que fizeram a ponte entre o mundo analógico e o digital, entre o real e o virtual. E, sejamos sinceros, nos saímos muito bem.
Fomos forjados em aço. Não existia essa sensibilidade exagerada que parece dominar o mundo de hoje. Na nossa época, ninguém falava em bullying, burnout ou mansplaining. Se alguém tivesse um problema com outro colega, resolvíamos ali mesmo, na quadra ou no recreio, na base da discussão ou, às vezes, da porrada. Depois, seguíamos juntos para casa, rindo, como se nada tivesse acontecido.
Tinha o Gordo, a Feia, o Barrigudo, o Orelhudo, o Peitudo, a Vaca, o Boi, o Cearense, o Paraíba, o Negão… E todos amavam seus apelidos. Ninguém chamava isso de bullying.
Na verdade, o apelido era quase um título de honra. Era uma forma carinhosa, ainda que direta, de sermos identificados na turma. Era como se aquele nome alternativo nos tornasse únicos, nos incluísse em algo maior. A gente ria, às vezes revidava com outro apelido ainda mais criativo, e tudo seguia leve, entre risadas e amizade verdadeira. Existem amigos que ficaram na infância que sequer lembro seus nomes, mas os apelidos…
O Gordo era o mais ágil no futebol. A Feia era quem mais arrumava namorados. O Orelhudo ouvia tudo e contava as melhores piadas. O Peitudo fazia sucesso nas festas. O Paraíba era o mais corajoso nas brigas. O Negão era respeitado e admirado por todos. O Boi e a Vaca andavam juntos, sempre se cutucando de brincadeira. E ninguém se ofendia. Ninguém se sentia diminuído. Pelo contrário, era sinal de que você pertencia à turma, que era aceito, que tinha uma identidade dentro daquele pequeno universo chamado amizade.
Na escola, no intervalo, jogávamos conversa fora sentados nos degraus ou nas calçadas. Dividíamos o lanche, o refrigerante e até o chiclete. Se alguém aparecia com uma tubaína gelada ou uma ficha de fliperama, virava herói do dia. A vida era simples. A vaia era coletiva, a gargalhada era contagiante, e o tempo parecia passar mais devagar.
Os apelidos surgiam naturalmente. Bastava um tombão no meio da rua para nascer o “Cai-Cai”. Um dente quebrado e nascia o “Banguela”. Um tênis furado virava o “Furadão”. E ninguém corria para a diretoria. A gente aprendia a rir de si mesmo e a devolver com inteligência, não com ressentimento.
A verdade é que, naquela época, ninguém precisava de manual de convivência. Existia algo chamado limite natural das coisas. A gente se zoava, se abraçava, brigava, chorava e ria… tudo no mesmo dia. E no final, ainda andávamos juntos até a esquina, com a certeza de que, no dia seguinte, tudo se repetiria.
Hoje, chamariam nossos apelidos de ofensivos. Psicólogos diriam que estávamos vivendo “microagressões”. Mas nós sabemos: era só vida acontecendo, do jeito mais autêntico possível. A primeira vara da infância de da adolescência era essa:
Talvez seja por isso que seguimos tão firmes, mesmo depois de tanto tempo. Porque aprendemos a rir da vida. E a rir de nós mesmos, sem perder a ternura, sem perder o respeito e sem nunca perder a amizade.
Parávamos nas lanchonetes do bairro para comer coxinhas de frango, pastéis gordurosos e tomar aquele sorvete de massa que nos custava umas poucas moedas. Era um luxo. A infância tinha cheiro de asfalto quente, gosto de lanche barato e barulho de risada solta.
A gente brincava com pistolas e revólveres de plástico, e nenhum de nós se tornou marginal.
E as festas? As meninas levavam os doces e salgados, e a rapaziada entrava com os refrigerantes. Todo final de semana tinha uma festinha na casa de alguém da turma. Era simples, mas era especial. Tinha risada, tinha dança, tinha amizade de verdade. E também tinham muitas bitocas…
E os bailes de charme e funk? Até o funk daquela época era diferente, e, convenhamos, muito melhor do que o de hoje. A letra tinha melodia, e o respeito ainda fazia parte da batida.
Os bailes começavam cedo, com luzes coloridas e vitrolão no volume máximo. Os meninos caprichavam no gel e no topete, as meninas usavam roupas com brilho e batom rosa chiclete. Dançávamos coladinhos ao som de músicas que falavam de amor, e não de ostentação ou vulgaridade. O clima era leve, com cheiro de perfume barato e coração acelerado.
Lembram da emoção de esperar a música certa para chamar alguém para dançar? A vergonha misturada com coragem, as mãos suando, o coração disparado… e quando ela aceitava, era como ganhar na loteria.
E depois, no fim da noite, todo mundo ajudava a arrumar as cadeiras e recolher os copos. Ninguém precisava de segurança, pulseira ou lista VIP. Só era necessário estar lá, com vontade de sorrir, dançar e fazer parte.
Injeção na escola? Não podíamos sequer escolher o laboratório… hahahahaha
Ali a gente criava memórias. Daquelas que o tempo não apaga, e que hoje só sobrevivem nas nossas lembranças mais bonitas.
Crescemos ouvindo crendices que moldaram nosso imaginário. Leite com manga matava. Chinelo virado era sentença para a morte da mãe. Tínhamos medo da loira do beco, do velho da ponte e da mulher do algodão. E como nos divertíamos com esses medos.
Quando chegávamos da escola, mal havia tempo para tirar o uniforme. Íamos direto para a rua brincar. Esconde-esconde, carrinho de Rolimã, queimada, pega-pega, pular corda, amarelinha, polícia e ladrão (geralmente com porrada), bolinha de gude, pião, elástico, salada de frutas ou mista, dependendo da região. E o futebol? A rua era o nosso Maracanã. Quantos de nós não voltou para casa com o dedão do pé arrebentado no paralelepípedo? E exibia isso com orgulho: era a marca da batalha.
Mais tarde, éramos chamados para casa: banho, jantar, cama. No dia seguinte tudo recomeçava. Era uma rotina simples, mas incrivelmente feliz.

Vivemos também a melhor fase da música. Crescemos ouvindo Roupa Nova, 14 Bis, Flávio Venturini, Lô Borges, Beto Guedes, Sá e Guarabyra, Milton Nascimento. O rock nacional nos embalava com Legião Urbana, Titãs, Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Blitz, Barão Vermelho, Skank e Capital Inicial. E tínhamos também os ícones internacionais: Bon Jovi, Madonna, Michael Jackson, Guns N’ Roses, Queen, AC DC, U2, Metallica, Iron Maiden, The Cure, Aerosmith, entre tantos outros. Era música com melodia, letra e alma.
Levávamos palmadas dos pais, às vezes dos avós ou das tias. E ninguém morreu por isso. Aprendemos a respeitar os mais velhos, a ouvir sem interromper, a ceder o lugar no ônibus. As professoras eram chamadas de “tias” e impunham respeito só com o olhar.
Hoje? Basta uma bronca para virar caso de Conselho Tutelar.
As músicas atuais? A nova geração acha que música é Anitta, Matuê, Luísa Sonza, Gloria Groove, Pablo Vittar (que consegue desafinar até falando), Iza… Não se trata de desrespeito, mas de constatar que o conteúdo empobreceu. As letras ficaram vazias, repetitivas. Falta poesia. Falta coração. Falta emoção. Pureza.
E os filmes? As décadas de 1980 e 1990 foram ouro puro. Cinema com história, personagens marcantes, trilhas sonoras inesquecíveis. Se você tem dúvida, leia este artigo: Os anos 80 e 90: as épocas de ouro do cinema mundial.
Crescemos com dignidade. Respeitamos nossos pais, nossos professores, nossos vizinhos. Formamos famílias. Estudamos, nos tornamos profissionais. Muitos, inclusive, com mais de uma profissão. Superamos desafios sem precisar de hashtags ou likes.
A geração de hoje?
Melhor deixar pra lá… Afinal, qualquer opinião vira ofensa.
Ostentação, naquela época, era ter um bip preso na cintura, ouvir música num walkman amarelo da Sony, fazer curso de datilografia, ter uma Barbie original ou um Falcon com uniforme de combate completo. E ainda assim, éramos gratos. A simplicidade era o nosso luxo. A felicidade estava nos detalhes.
Se você leu até aqui, provavelmente é um de nós. Daqueles que não apenas sobreviveram, mas viveram de verdade.
E a primeira fake news da história foi proferida com voz calma e olhar materno: “Pode passar, não vou te bater…” e ali começava o suspense psicológico mais intenso da infância.
A gente até acreditava, com o coração palpitando e passos curtos, como quem caminha para a própria sentença. No fundo sabíamos, aquela vara escondida atrás das costas não era adorno. Era destino. Só quem cresceu ouvindo isso sabe o que é viver sob tensão digna de Hitchcock, com trilha sonora de chinelo arrastando no chão e gritos ecoando na memória.
Hoje chamam de “trauma”. A gente chamava de “felicidade”, porque sempre que pensávamos em fazer algo errado, a lembrança do “pode passar” já nos fazia mudar de rumo. Ou dar risadas…
Léo Vilhena
@LeoVilhenaReal